Revolução da IA e o Judiciário brasileiro: um olhar a partir de Nova York

Nesta segunda-feira (19/8), o Supremo Tribunal Federal sediou um seminário sobre os “Impactos da Inteligência Artificial no constitucionalismo contemporâneo”. Na segunda-feira passada, o ministro Luís Roberto Barroso inaugurou o semestre do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), prestando conta das atividades desenvolvidas durante as férias coletivas dos membros do STF e dos tribunais superiores. Noticiou que esteve em visita institucional a Beijing e Shangai, na China, representando o STF e o CNJ, e que participou de um evento sobre inteligência artificial durante a sua estada no gigante asiático.

É notável que o segundo semestre de 2024 iniciou repleto de outras notícias sobre o uso de inteligência artificial no Poder Judiciário. O CNJ, no dia 14 de agosto, rejeitou pedido para barrar uso de IA no Judiciário [1]. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJ-ES) vai regulamentar sua política de uso de IA no Judiciário [2], o Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul (TRE-MS) usará inteligência artificial para gerência de processos [3], a Justiça paranaense criou política de utilização de IA generativa [4] e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) divulgou nota técnica que permitirá a utilização de IA nos processos conciliatórios [5]. O ministro Barroso, que vem se mostrando o maior entusiasta do tema no STF, lançará no dia 20 de agosto livro de sua autoria intitulado Inteligência artificial, plataformas digitais e democracia [6].

Tudo parece estar apontando para um cenário em que o Brasil será um dos países vanguardistas no uso dessas ferramentas pelos juízes. E isso se justifica em razão da própria introdução do Processo Judicial Eletrônico (PJe) e da digitalização dos processos, possibilitando a geração estruturada de dados para análise por meio de aplicativos e ferramentas tecnológicas.

Olhar das big techs

Prova disso é a redobrada atenção que as grandes empresas da indústria tecnológica (big techs) estão demonstrando no Brasil. Tivemos a grata honra de testemunhar o interesse dessas empresas pelo Brasil, presencialmente, na cidade que não dorme. O Colégio Permanente dos Diretores das Escolas Estaduais da Magistratura (Copedem), capitaneado pelo desembargador Marco Villas Boas, em parceria com a Escola Superior da Magistratura (Esmat), promoveu eventos nas sedes da Microsoft e da Google em Nova York [7].

Membros de diversos tribunais do Brasil assistiram a seminários ministrados por diretores, pesquisadores e desenvolvedores de diferentes produtos que buscam replicar o modo de funcionamento do cérebro humano para aplicação prática em diversas tarefas. O grande foco era explicar como funcionam essas ferramentas, quais são as suas origens e o longo trajeto de descobertas científicas percorrido até aqui, e projetar como serão os possíveis desdobramentos desse desenvolvimento tecnológico contínuo.

O objetivo das empresas foi explicar o contexto geral da inteligência artificial, demonstrar o funcionamento de cada um dos seus respectivos produtos e como eles poderiam ser utilizados no sistema de Justiça brasileiro. Por sua vez, os magistrados brasileiros não se limitaram a escutar passivamente e receber as informações.

Demonstraram como o Brasil, já há décadas, pode se orgulhar de dizer que possui um dos judiciários mais modernos, em termos tecnológicos, no mundo. Todos que militam no Direito, ou já tiveram litígios na Justiça, sabem que há muitos anos não se usa mais papel nas ações. Quase 100% dos processos são eletrônicos.

Podemos ter disfuncionalidades na uniformidade dos sistemas de cada tribunal, mas a verdade é que todos o utilizam e que o CNJ, esse importante órgão de uniformização de condutas no sistema de justiça, possui, cadastrados em seu sistema, quase a totalidade dos quase 85 milhões de processos em tramite no Brasil. O CNJ dispõe ainda de uma base de dados ampla, majoritariamente digitalizada, de fácil acesso por qualquer um que disponha de um token ou login e senha.

Digitalização avançada

A “síndrome de vira-lata” de que padecem muitos brasileiros não irá afastar o fato de que o Judiciário brasileiro é muito avançado tecnologicamente. Pouquíssimos países conseguiram digitalizar mais da metade dos seus processos. Os Estados Unidos, que sediam as maiores big techs no mundo, não conseguiram digitalizar nem 40% dos seus processos, e em muitas das cortes estadunidenses ainda se utiliza o papel.

Não só já estamos perto de concluir o processo de digitalização das cortes brasileiras, como aponta Antônio Ali Brito em estudo primoroso sobre o tema, como o Brasil, diferentemente de muitos países, já desenvolveu, em dezenas de suas cortes, inteligências artificiais próprias. O relatório do CNJ “Justiça 4.0” identificou 140 projetos de IA desenvolvidos ou em desenvolvimento nos tribunais e conselhos de Justiça:  É claro, quando se fala de inteligência artificial, as possibilidades são muitas. Há vários tipos e níveis de inteligência artificial, a depender da função pretendida. O que se revela é que o Brasil está se mostrando um rico ambiente para divulgação de boas práticas institucionais, como o ChatTCU, do qual, aliás, o TCU disponibiliza publicamente o código fonte.

Outra interessante iniciativa brasileira apresentada no seminário é o “Projeto Hórus”, desenvolvido pelo Esmat/TJ-TO, pelo Grupo de Pesquisa SmartCitiesBr da Universidade de São Paulo (USP), e outros colaboradores. Trata-se de desenvolver uma IA generativa ativa para lidar com altos volumes de processos, que seja compreensível e educativa, e que possa oferecer respostas seguras.  O experimentalismo com essas ferramentas está, no Brasil, a pleno vapor.

Próximos passos

A mensagem que fica do evento é: a inteligência artificial será usada amplamente no Poder Judiciário. Não há como fugir disso. O debate deve ser: que tipo de controle podemos ter? A utilidade da IA é auxiliar o Poder Judiciário, para evitar erros e promover a integralização informacional. O desafio dos precedentes brasileiros, por exemplo, talvez possa enfim ser devidamente enfrentado a partir justamente do uso da IA, até mesmo para a identificação de particularidades de cada caso e evitar-se os riscos de apenas se reproduzir decisões massificadas.

Da mesma forma, as lides predatórias também podem ser mais bem identificadas e solucionadas. Os chamados problemas estruturais nos litígios estruturais também podem ser compreendidos e pensados a partir de simulações de cenários e impactos estruturais com tamanha precisão somente possível om o uso de tecnologias generativas.

É claro, no entanto, que ainda há muito o que debater sobre os desafios éticos e legais do uso de inteligência artificial no Judiciário. Questões como a transparência das decisões, o viés algorítmico e a proteção de dados são temas imprescindíveis para que essas ferramentas possam ser operadas com segurança.

As ferramentas devem ser customizadas para cada julgador, como autênticos “avatares”, de modo a incorporar as peculiaridades microlocalizadas. É importante também pensar em métodos de se atribuir responsabilidade e publicidade a essas decisões, e que essa ferramenta seja controlável e explicável. A questão, então, é a seguinte: como usar as potencialidades desse mundo novo que se descortina para que possamos analisar a grande massa de processos no Brasil e, a partir de análises aprofundadas que não seriam possíveis de outra forma, oferecer respostas para que o sistema de justiça não só seja ainda mais eficiente, como, na era digital, mais também mais seguro, tornando real, palpável e concreta a promessa constitucional do amplo e efetivo acesso à Justiça.

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